Assim, estabelece a dúvida como método de pensamento rigoroso. Duvida de tudo que lhe chega através dos sentidos, duvida de todas as ideias que se apresentam como verdadeiras. À medida que duvida, porém, descobre que mantém a capacidade de pensar. Por essa via, estabelece a primeira verdade que não pode ser colocada em dúvida: se duvido, penso, se penso, existo, embora esse existir não seja físico. Existo enquanto ser pensante (sujeito ou consciência) que é capaz de duvidar. Formula esta descoberta em uma frase muito conhecida: Penso, logo existo. A partir dessa primeira verdade intuída, isto é, concebida "por um espírito puro e atento, tão fácil e distinta, que nenhuma dúvida resta sobre o que compreendemos", Descartes diferencia dois tipos de idéias: algumas claras e distintas, outras confusas e duvidosas. Propõe, então, que as idéias claras e distintas, que são idéias gerais, não derivam do particular, mas já se encontram no espírito, como instrumentos com que Deus nos dotou para fundamentar a apreensão de outras verdades. Essas são as idéias inatas, que não estão sujeitas a erro e que são o fundamento de toda ciência. Para conhecê-las basta que nos voltemos para nós mesmos, através da reflexão.
Dentre as idéias inatas,
encontramos as de um Deus Perfeito e Infinito (substância infinita), da
substância pensante e da matéria extensa. O ponto de partida de Descartes é,
pois, o pensamento, abstraindo toda e qualquer relação entre este e a
realidade. Como passar, porém, do pensamento para a substância extensa, ou
seja, a matéria dos corpos?
Exatamente porque pensamos,
podemos pensar a ideia de infinito, ou seja, de Deus, com todos os seus
atributos, dentre os quais está a perfeição. Ora, para ser perfeito, Deus deve
existir. Da ideia de Deus, passamos a poder afirmar sua existência enquanto
ser. Continuando o raciocínio, esse ser perfeito não nos engana e, se nos faz ter
ideias sobre o mundo exterior, inclusive sobre nossos corpos, é porque criou
esse mesmo mundo exterior e sensível. Assim, a partir de uma ideia inata,
podemos deduzir a ideia da existência da matéria dos corpos, ou seja, da
substância extensa.
Devemos notar, entretanto,
que a razão não afeta nem é afetada pelos objetos. A razão só lida com as
representações, isto é, com as imagens mentais, idéias ou conceitos que correspondem
aos objetos exteriores. É neste ponto que se coloca, com maior nitidez, a
necessidade do método para garantir que a representação corresponda ao objeto
representado. O método deve garantir que:
• as coisas sejam
representadas corretamente, sem risco de erro;
• haja controle de todas as
etapas das operações intelectuais;
• haja possibilidade de
serem feitas deduções que levem ao progresso do conhecimento.
Assim, a questão do método
de pensamento toma-se crucial para o conhecimento filosófico a partir do século
XVII. O modelo é o ideal matemático, não porque lide com números ou grandezas
matemáticas, mas porque, fiel ao sentido grego de ta mathema, visa o
conhecimento completo, perfeito e inteiramente racional.
Fonte: Temas de Filosofia. Maria Lucia Aranha
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